“O QUE É O ESCLARECIMENTO?”: NOTAS SOBRE O
MANIFESTO KANTIANO
José
Aristides da Silva Gamito
1.
Introdução
O artigo “O que é o
Esclarecimento?” (Was ist Aufklärung?)
é um texto clássico da filosofia que merece ser revistado em tempos de
questionamento da liberdade de expressão. Trata-se de um texto do gênero manifesto publicado por Emmanuel Kant em
5 de dezembro de 1783. O contexto histórico é o movimento iluminista que
aconteceu entre fins do século XVII e fins do século XVIII.
O tema principal do
manifesto “O que é o Esclarecimento?” é o tratamento da liberdade das crenças e
expressões das ideias individuais diante do espaço público e do Estado. Além de
reivindicar o uso da razão, Kant distingue o dever funcional da crença
individual, discute sobre os limites da revisão de crenças e de costumes e
concebe uma ideia de espaço público para o exercício da razão.
2.
Apresentação
do texto
O texto inicia com a
definição de que o Esclarecimento (Aufklärung)
é “a saída do homem de sua menoridade”. O pressuposto de abertura do texto é de
que os homens são universalmente dotados de razão, mas o seu uso depende de uma
decisão pessoal. A menoridade (Unmundigkeit)
é a incapacidade de usar o próprio entendimento, deixando-se ser tutelado pelo
outro (Vormund).
As causa da permanência
dos homens na menoridade são a falta de coragem, de ousadia. A continuidade
neste estado é mais cômoda. Se eles têm tutores para pensar, orientar e decidir
por eles, é um a condição que poupa esforço. A transição para a maioridade é
considerada perigosa e os tutores que se beneficiam de seus orientandos se
aproveitam desta dependência. A supervisão dos outros é um exercício de poder
que agrada a muita gente. Muitos são tentados a serem tutores alheios por causa
desta mitificação da tutela. Há uma simbiose entre tutor e tutelado. Enquanto,
o primeiro se envaidece e exerce seu controle sobre o segundo; este último
sente-se protegido, acomodado. Este exercício do poder constitui vários vícios
dos tutores. A menoridade se encaixa tão perfeitamente na vida de alguns homens
que passa a ser “quase uma natureza”. Portanto, a saída desta condição é
dolorosa. Kant insiste que, apesar das quedas, muitos “aprenderiam muito bem a
andar”.
A permanência na
menoridade é o procedimento do uso mecânico da razão, através de preceitos e de
fórmulas. A falta de hábito no exercício livre da razão desencoraja muita gente
a avançar em direção da maioridade. A dependência
dos tutores nos faz pensar que um povo não é capaz de marchar por si mesmo, mas
existem muitos indivíduos que são capazes de pensamento próprio. Muitos tutores
são capazes libertar seus tutelados quando admitem a possibilidade do
pensamento autônomo. Assim como há tutelados que saem do jugo de seus tutores.
Kant acredita que o processo do esclarecimento por si mesmo é lento. As
revoluções podem mudar os regimes e as estruturas de poder, mas não podem
reformar o pensamento das pessoas. Uma massa destituída de pensamento, após uma
revolução, só terá seus preconceitos trocados.
A pedra angular do
Esclarecimento é a liberdade. Neste ponto, Kant introduz o conceito de uso
público da razão. Esta é a possibilidade do cidadão, independentemente de
crenças pessoais, exercer publicamente sua razão em todas as questões. Muitos
setores que exercem poder na sociedade querem apenas obediência e ação. Kant cita exemplo do oficial, do financista e
do sacerdote. Eles atuam em espaços onde a obediência torna-se mais conveniente
do que o raciocínio. O uso privado da razão pode também contribuir para o
progresso do Esclarecimento, mas sua atuação se amplia com o uso público.
Kant define “Entendo,
contudo, sob o nome de uso público de
sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do
grande público do mundo letrado”. O uso privado acontece no exercício da
função. Muitas profissões exigem mais obediência do que raciocínio. Porém,
estes profissionais podem, por meio da literatura, raciocinar diante do grande
público. A desobediência imediata impediria que muitas instituições
funcionassem, mas enquanto desempenha as suas funções, nenhum cidadão pode ser
impedido de fazer observações e de propor reformas. Sem esta liberdade nenhuma
atividade humana progrediria.
Kant faz uma distinção
do dever do funcionário da atuação do cidadão no espaço público. Um militar ou
um sacerdote não podem desobedecer as ordens que recebe. Enquanto, membro de
uma instituição o seu dever é cumprir ordens. Porém, estando em jogo a
necessidade de sempre aperfeiçoar as instituições, todo cidadão sábio tem o
dever de expor publicamente suas ideias contra a inconveniência ou a injustiça
das imposições das ordens recebidas. Se houver uma ruptura entre o dever do
funcionário e o dever do cidadão, o uso da razão não pode ser restringido.
Neste sentido, Kant reconhece o dever funcional como uma necessidade de cada
atividade humana. Mas ao mesmo tempo, concebe que no uso público da razão,
esses funcionários são livres das obrigações funcionais para exercerem sua
liberdade de pensamento.
As instituições têm, às
vezes, necessidade de um “credo invariável” para se manterem. Mesmo que tentem
exercer este poder, haverá sempre espaços para ampliação de conhecimento. As
reformas e as rupturas vão naturalmente acontecer. O progresso, na opinião de
Kant, é um movimento natural, impedi-lo é um crime. É necessário assegurar no
uso público da razão a defesa do reparo das instituições.
A inalteração das instituições permaneceriam asseguradas
até que se compreendesse com profundidade a natureza das mudanças. Kant defende
as reformas institucionais, de crenças e de costumes, mas considera que as
mudanças devem ser prudentes. Além disso, defende a coexistência de pessoas com
crenças novas e antigas dentro de uma mesma comunidade. A liberdade pública
deve assegurar a coexistência de ordens novas e velhas. O Estado não poderia de
modo nenhum fixar um modelo de crença do qual não se pudesse duvidar. Os princípios
da democracia aparecem no manifesto de Kant ao falar de “votação”, “ainda que
não unânime”, o direito de duvidar e a coexistência da diversidade de crença.
Ele distingue a vontade do soberano da vontade geral do povo. E repele o uso da
violência para unificar pensamentos e uso da censura aos escritos.
Em determinado ponto,
Kant chega à pergunta: “vivemos agora uma época esclarecida?” Esta questão se
torna atemporal porque pode ser repetida em outros momentos da história. A
resposta da época de Kant é que faltava muito para se chegar a um
esclarecimento ideal, mas cita um avanço do Estado através da figura de
Frederico (Frederico II, rei da Prússia). E toma este exemplo como a forma
ideal de procedimento do príncipe: Permitir a liberdade religiosa e moral. No
seu tempo, a preocupação maior foi com a liberdade religiosa, menos com artes e
as ciências. Porém, a mesma liberdade é necessária nestes dois campos. O Estado
deve permitir o uso público da razão e a crítica do estado das coisas
existentes.
O filósofo alemão
termina o manifesto defendendo que a liberdade de espírito permite a um povo
maior liberdade civil. A natureza do próprio homem é a liberdade e deve agir de
acordo com ela.
Referência
KANT,
Immanuel. Resposta à Questão: O que é o Esclarecimento? In: MARÇAL, Jorge (Org.). Antologia de textos filosóficos.
Curitiba: Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 2009.
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