HIPÁCIA DE ALEXANDRIA (375-415):
UMA PENSADORA NEOPLATÔNICA
José Aristides da Silva Gamito
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Vida, pensamento e obras
Hipácia de Alexandria
nasceu em 375 depois de Cristo, em Alexandria, no Egito. Era filha do
matemático Teão. Oriunda de uma cultura que negava a oportunidade da educação
para as mulheres, Hipácia recebeu uma formação sólida e se tornou uma
intelectual bem sucedida. Ela nasceu numa fase de transição entre paganismo e
cristianismo. Depois da liberdade religiosa conferida pelo Império Romano aos
cristãos, o paganismo acabou perdendo espaço. Mais tarde, os pagãos passaram a
ser perseguidos. Em Alexandria, grande centro cultural do Egito da época, as
disputas por hegemonia na cultura e na política geraram grandes
desentendimentos e enfrentamentos.
A época de Hipácia foi
muito desafiante para os egípcios porque representa uma transição dos valores
pagãos para os cristãos. No meio do crescimento do cristianismo, o Museum resistia como um reduto dos
intelectuais pagãos. Teão, pai de Hipácia, foi exímio professor de matemática e
astronomia nessa instituição. A filósofa provavelmente foi escolarizada pelo
pai e acabou tendo acesso às aulas de outros mestres do Museum. Naquela época, estava em voga em Alexandria a escola
neoplatônica (WAITHE, 1992, p. 170).
Hipácia estudou
filosofia, matemática e astronomia. Tornou-se professora nessas ciências e
chegou a dirigir a escola neoplatônica de Alexandria. Ela atingiu o feito
raríssimo de ser uma professora remunerada pelo Estado, isto é, pelo Império.
Isso se deveu à boa reputação que tinha entre os magistrados e com o prefeito
da cidade, Orestes (MARTINO; BRUZZESE, 1996; SALISBURY, 2001). Apesar de ser uma
professora famosa e requisitada até por estudantes de nações distantes, ela
sofria a oposição dos cristãos alexandrinos por ser pagã. O bispo Cirilo estava
travando uma ofensiva contra os pagãos da cidade e um grupo de monges nitrianos
enraivecidos atacaram Hipácia, dilaceraram seu corpo e o queimaram. Ela morreu
em 415 como vítima de intolerância religiosa. A perseguição que sofreu fazia
parte desse contexto turbulento no qual cristãos e pagãos procuravam dominar a
cultura e a política no Egito do século V (MARTINO; BRUZZESE, 1996; SALISBURY,
2001).
Hipácia escreveu três
obras que são o Comentário sobre o
Arithméticum de Diofanto, Comentário
sobre a Sýntaxis Mathemática de Ptolomeu e o Comentário sobre as Seções Cônicas de Apolônio Pergeu. As obras foram perdidas, provavelmente, durante
a destruição da biblioteca de Alexandria (WAITHE, 1992, p. 174). O pensamento
filosófico de Hipácia pode ser reconstituído de modo indireto e hipotético
visto que não chegou até nós nenhuma obra sua de assunto filosófico. Hipácia
ensinou a filosofia de Platão, de Aristóteles e de Plotino. A informação que
temos de que ela foi diretora da escola neoplatônica a filia diretamente na
corrente do neoplatonismo (WAITHE, 1992, p. 193).
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A reconstituição do pensamento filosófico de Hipácia
O ponto de partida é a
recepção das doutrinas de Platão no Egito do século III. Plotino (205-270 d.
C.) foi o fundador do neoplatonismo. Essa extensão do platonismo se desenvolveu
no Egito e teve influência diretamente sobre Hipácia. Esse pensamento
representa a fusão entre as ideias de Platão e as religiões pagãs existentes no
Egito. O neoplatonismo busca elevar a visão de mundo dessas religiões. Segundo
os neoplatônicos, Deus é único e sua natureza não pode ser expressa por meio de
qualidades humanas. Ele é totalmente distinto do mundo. Assim ele é inatingível
pelas criaturas imperfeitas. Essas procedem de Deus, mas são imperfeitas e
inferiores (MONDIN, p. 126-127).
Plotino ensinava que o Uno
(isto é, Deus) pode ser reconhecido imediatamente pelos seres humanos. O
universo aponta para isso. Mas esse reconhecimento da existência do divino não torna
o ser humano capaz de descrever Deus e de enumerar as suas características. No
mínimo, podemos dizer o que Deus não é (essa abordagem chama-se teologia negativa). Tudo que se possa
pensar sobre o Uno, ele é mais. Enfim, ele é indizível e inominado. Essa visão
sobre o divino traz como consequência uma postura mística, de busca do divino
sem a pretensão de descrevê-lo (MONDIN, p. 127-128).
A filosofia de Plotino
considerava que todas as coisas procedem do Uno sem prejuízo para a sua
integridade. Todas as coisas foram originadas dele. Isso significa que Plotino
não acreditava em criação do mundo, mas em processão/emanação. A imagem
utilizada para a explicação desse processo é o sol e seus raios. A
multiplicidade de criaturas no universo procede do Uno sem alterar a sua
existência como os raios provêm do sol sem diminuir sua luz. A processão
acontece partindo das criaturas mais perfeitas para as imperfeitas. A criação é
toda hierarquizada no pensamento de um neoplatônico. A matéria é a emanação
derradeira do Uno e, portanto, é a mais imperfeita e, consequentemente, má. Por
isso, ela é fonte de ignorância, sofrimento, envelhecimento, morte. Mas esteja
atento para esse ponto. Ela não é um mal absoluto, apenas a negação do bem
(MONDN, p. 129-130).
O homem é o ponto
central da emanação. Ele reflete os dois extremos da existência: o espírito e a
matéria. A alma é entendida por Plotino como distinta do corpo e preexistente a
este. A união de corpo e de alma aconteceu por necessidade da existência. Em
outras palavras, elas são os pontos de contato entre a realidade perfeita,
superior e a imperfeita, inferior. Essa composição provoca no homem um
conflito: a alma o eleva e o corpo o rebaixa. Ou seja, enquanto a alma o
impulsiona para a realidade espiritual, o corpo quer levá-lo a usufruir da
matéria. O dever do homem é reestabelecer a unidade das duas partes com o Uno.
O retorno da alma é fruto da liberdade humana e do empenho de sua vontade. Por
fim, o caminho para a união com o Uno passa pela ascese (exercícios das
virtudes cardeais), a contemplação (através da filosofia) e o êxtase (união
mística com o Uno). O resultado final da existência humana é o confundir-se da
alma com o Uno (MONDN, p. 130-132).
Considerando os
fundamentos teóricos do neoplatonismo, podemos dizer que Hipácia de Alexandria pensava
a realidade de modo dualista; Deus era entendido no sentido da teologia
negativa; o estudo da filosofia e a prática da virtude eram meios para
aperfeiçoar o ser humano moralmente, misticamente. Todas essas ideias eram
enriquecidas por uma visão matemática do universo. Esse é um caminho possível
para redescobrir a filosofia de Hipácia. Outras leituras podem e devem ser
feitas.
REFERÊNCIAS
MARTINO, Giulio de; BRUZZESE, Marina. Las filósofas. Traducción de Mónica
Poole. Valencia: Universitat de València, 1996.
MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. Volume 1. São Paulo: Paulus, 1981.
SALISBURY, Joyce. Encyclopedia of
Women in the Ancient World. California: Abc-clio, 2001.
WAITHE,
Mary Hellen. A History of Women
Philosophers. 600 BC – 400 AD. Volume 1. Dordrecht: Springer, 1992.